Pedro José do Nascimento Rocha, o seu Pedro, como aprendi a chamá-lo, tem uma loja em que conserta TVs e rádios. Em 2021, seu estabelecimento faz 63 anos. Rádio Oficina Vitória. Mas foi mais ou menos em 2004 — ou antes, não sei — que eu fiquei sabendo dela, indo lá com minha mãe. Distante do Centro como eu estava, para mim tudo era exótico. Como minha mãe foi achar aquela portinha, aquela oficina de consertar TVs, naquele bairro tão distante? Lembro-me vagamente de ficar irritada com ela: no meio da rua, de uma pista só e muito movimentada, minha mãe parou, me mandou tirar a TV e pediu ajuda lá dentro da loja, parando o trânsito, e eu morrendo de vergonha. “Por que aquela loja?”
Mal sabia eu que aquela vergonha viraria lembrança. Não uma das muitas que a gente guarda, mas uma que fica numa gaveta diferente... que ressurgiu quando minha mãe morreu. Nela, tentei colocar as lembranças, mas ela nunca enchia. Nunca. Melhor dizendo, era como se qualquer lembrança que entrasse lá mudasse no exato momento em que tocasse o oco da gaveta, virando conversas mentais do tipo "Mãe, desculpa por ter ficado com raiva naquele dia", "Sabe... obrigada por ter me chamado", "Sempre que eu olho pra loja do seu Pedro eu lembro de você", "Ele é tão legal, sempre fala de você". Lembrança que deixa de ser lembrança. Mas isso é só um canto do meu porquê, e mas digo isso por conta da suspeita de que esse canto fez o porquê crescer até ser visto. A verdade é que ainda tenho dificuldade de pôr o que penso em palavra. Quem sabe um dia, quem sabe ouvindo. Daí, há na oficina do seu Pedro (que não é a oficina do seu Pedro sem seu Pedro) coisas que me fazem viajar. Coisas que percebo há muito tempo e eu queria tentar amplificar... mais do que isso, ouvir mais e aos poucos, e, como um morcego, ir entendendo minha posição pelo eco.
Uma dessas viagens é que a loja de seu Pedro me faz sentir o tempo se esvaindo das mãos. Só de olhar... as colunas altas do prédio de várias décadas atrás emolduram a pequena e antiga portinha de metal, que, quando se abre, dá acesso a um mundo de aparelhos que parecem querer dizer que resistem, que querem ser curados, cuidados. De lá, todo dia, pulam para a rua TVs de todos os tipos, grandes e pequenas (além de rádios, videocassetes e o resto da família), como se estivessem prontas para acompanhar o despertar do povo em mais um dia de trabalho. Como consertar e dar nova vida a essas vidas com os dias contados? A Rádio Oficina Vitória parece conhecer esse poder.
"Bom dia, abençoada." "Um abraço com Jesus." Seu Pedro sempre me cumprimenta assim, mesmo eu tendo ido tão poucas vezes à oficina. Não só a mim, mas a cada vida que vê passar através de seus óculos coloridos de lente brilhante, sentado em frente à portinha, na mesma cadeira de plástico amarela. De onde ele tira essa alegria que parece faltar no mundo? "É natural meu mesmo..." E talvez tenha a ver também com entender o tempo das coisas. Até das TVs.
Nascido na Serra, casa de estuque, seu Pedro saiu de lá para o Centro aos 13 para trabalhar no Hotel Tabajara. Fazia de tudo, até dormir no sótão do hotel. Quis estudar, mas a dona disse que não podia, não dava. Até que um dia foi trabalhar na Rádio Peças Vitória, na Barão de Itapemirim, onde o barão era o Ransay, de quem acabou cuidando (palavra do seu Pedro) por muitos anos, devido a complicações de toda ordem. Dormia no trabalho também, e sua mãe, lá da Serra, enviava todo dia bilhetes em forma de marmita, para almoço e para janta. Só voltava de lá no fim de semana para dizer que a mensagem tinha chegado.
O tempo não se conta mais do mesmo jeito como se fazia na Rádio Oficina Vitória. “Rádio” porque era radiola, rádio amador, vitrola. Hoje é podcast, streaming. Hoje cada segundo de tempo quer ter todos os segundos de tempo possíveis do planeta nele, multiplicado ao infinito se a gente pensar que a cada aba aberta isso se repete. Um dia, me falaram que havia uma coisa chamada de fractal, que cada parte da imagem repetia a imagem completa toda de novo. Às vezes parece que estão querendo fazer isso com o tempo. Sem fim, sem morte, sem recomeço. Um tempo sem o tempo. Sem descanso (acho que a dona do hotel ia adorar saber que, em 2021, isso tinha virado empreendedorismo). Mas não ali na Oficina Vitória. Ali, tudo parece ter o direito de envelhecer ou de, ao menos, descansar, parar. Veja ali a placa externa. Acho que é quase um fóssil, talvez o único na cidade que prova que um dia existiu telefone fixo — e sem o 3 na frente. E por que ela deveria acompanhar esse tempo que não a entende? Ela é suficiente.
Essa placa sem o 3 viu Seu Pedro ser chamado para ser vereador da Serra, no tempo da ditadura, convidado para ser da "oposição". Ele não entende bem a origem do gosto, mas sempre se interessou por política e ia até ver comícios quando podia. Um dia, antes do golpe, tinha se candidatado, mas não foi eleito. Daí no utro dia (um dia que durou muitos anos), quando os eleitos não assumiram, chamaram ele. Fez uma biblioteca e o parque Mestre Álvaro, até que desistiu. “Uma coisa horrível foi a ditadura.” Era difícil para ele dividir essa tarefa com o trabalho no Centro. Mas ele defende até hoje, no tempo-fractal, que vereador tem que ser trabalho voluntário, pelo bem comum. O tempo deveria servir para fazer destino também. E se fosse hoje prefeito, seu Pedro faria teleférico da Fonte Grande ao Romão, para as pessoas terem melhor transporte, e restaurantes populares também. O Centro, diz ele, “está que nem como quanto os filhos largam os pais no asilo e esquecem". Mas, até onde ele pode, não. Isso diz muita coisa lá do tempo. Não existe asilo se o tempo não é medido pela utilidade.
Mas um dia o Ransay se foi, e deixou a loja com Pedro. O que tinha dentro, porque a loja era alugada. Em 92, Pedrou conseguiu comprar. Naquele tempo, consertar dava sustento. Ele contou também que ensinou a “várias pessoas que não eram incluídas na sociedade”, meninos que ficavam ali por perto, muitos engraxando sapatos, a consertarem os aparelhos que chegavam à oficina, e que depois se tornaram técnicos, não necessariamente ali. E lá na Rádio Oficina Vitória seu Pedro pagava todos os custos e administrava, e os técnicos cuidavam do resto, 50% para cada parte. Por falar em administração, uma coisa que talvez ninguém saiba é que, graças a seu Pedro, em Vitória está talvez o computador mais antigo em atividade. De tela grande e processamento rápido, milhares de papéizinhos cobrindo cada milimetro das paredes da lojinha formam um banco de dados nesse sistema operacional que seu Pedro programou. Ali nenhum papel é importunado por 2021.
Dessa época, em que consertar dava sustento, depois de comprar a loja e trazer os pais para Vitória, diz seu Pedro , dos 50% que costumava ganhar, dividiu parte do valor entre os técnicos e doou o restante. O que sobrava ele usava para viajar e criar boas lembranças. “Eu sou espiritualista... para que isso de ficar acumulando? A gente tem que dividir.” “Sempre que como um queijo, um peixe, eu me angustio... não tá certo isso de eu poder comer isto e outra pessoa não.” Não tem palavra que dê conta disso mesmo não, seu Pedro. Nem do que ainda dizem suas TVs.
Contudo, seu Pedro diz que quer mudar de ramo, porque acha que esse negócio de consertar não está mais interessando às pessoas. Mas ele e as TVs não querem deixar de trabalhar, e, conhecendo o tempo como poucos conhecem, para seu Pedro e as TVs, o tempo circula, sem a repetição-fractal: querem voltar às vitrolas.