É na chumbada da linha que o anzol desenha sua profundidade. Entre água e ar, entre ar e chão.
O peso afirma a margem.
Enquanto houver alguém erguendo a demora e o segredo, e outro alguém olhando e refazendo essa ladainha, a continuidade estará protegida.
Antônio de Paula me contou que ninguém ensina a fazer barco, quem quer aprender olha e aprende. Também não ensinaram meu pai, Jorge da Costa, a conhecer a madeira, ninguém pode ensinar a mandinga e, desde sempre, para bom entendedor meia palavra basta.
O trabalho é a ladainha do corpo. É zanzando do corpo antigo para o novo que se sustenta a muvuca do andado de um saber.
Quando é impossível delimitar, ou localizar as margens, tudo se sabe do centro. No meio do oceano a onda não afirma a praia. Ela pulsa para alimentar seu próprio movimento. O oceano é um centro espraiado.
Conversando com Sonhador Portela, ele me contou que o lugar onde mais gosta de estar é deitado no fundo do mar. Sem beira, sem a zoada dos barulhos da terra.
O nó em que a linha circunda a si mesma, para se juntar a si ou a outra coisa, é nó de empate.
Empate é uma palavra que diz sobre igualdade e limite.
O nó do ferro é a solda. Matérias sólidas precisam inflamar para se unir. A um milímetro do toque que opera o zigue-zague da liga. Se encostar, gruda, mas não junta.
Encontro é uma energia in-visível que zanza na distância de dois corpos. Tem uma labareda vermelha que junta as coisas antes delas se tocarem. Sendo eu também feita de ferro, só posso encostar em outro corpo depois que a labareda zanza e liga a distância dos nossos umbigos.
eu tenho calma e agonia.
isso tudo eu chamo de amarração
(dos nós aprendidos com Sonhador Portela e Natan Dias)
Luana Vitra e Rafael Segatto.
A recusa também é um gesto de esperança.
Manter o motor ligado mesmo que o barco esteja ancorado no cais. Apagar as luzes enquanto ainda se ouve o som. Esconder-se mesmo sabendo-se que foi visto. Se o barco é casa, não adentrar sem um convite. Estar na presença. Na dupla presença. Silenciar. Não arrefecer de toda a postura. Manter-se firme e imóvel. Se concentrar naquilo que se propõe. Não olhar também é sobre recusa. É bonito percebê-la. Entender os caminhos também pelos gestos.
A cabeça busca alguma coisa que não seja o agora. Colocar o coração no chão. Remar até o coração crescer. Encontrar permanência na presença. Boiar as coisas que dão sentido à vida. Coragem para se afundar em si mesmo.
O conjunto de coisas que faz o encontro acontecer é de incertezas. Toda tempestade é caminho.
Inspirar o ar puro. Preto. Puro. Marear. Perder a noção do tempo. Ouvir no rádio o barulho do silêncio. Aceitar a recusa. Caminhar. Recusar. Aceitar o caminho. Adormecer na estrada. Permanecer no caminho. A cor do poente. Os arames da pesca. Os anzóis. A água do mar invadindo a casa.
O desejo de criar territórios, a vontade que pulsa e nos leva ao cais.
Para Luana e Sonhador
Texto de Rafael Segatto
Artista plástica, dançarina e performer. Cresceu em Contagem, cidade industrial que fez seu corpo experimentar o ferro e a fuligem. Entende o próprio corpo como armadilha e sua ação como micropolítica na lida com a materialidade e espacialidade que seu trabalho evoca, confronta e confunde.
Nasceu em Mucuri/BA. É pescador e mecânico marítimo formado pela Marinha de Salvador. O mar o conduziu para muitos territórios, entre eles Porto Seguro, Rio de Janeiro, Salvador, Africa do Sul, Caribe, Abrolhos, Santos… Vive em Vitória desde 1985 e se sente em casa em qualquer lugar em que haja mar. Mora em seu barco, que também se chama Sonhador Portela. Não encontra lugar para si em terra, e no fundo do mar é onde ele ouve seu silêncio. Portela vem de uma família de pescadores e aprendeu o ofício com seu pai. Já trabalhou com pesca de atum, lagosta e, atualmente, dedica-se à pesca de camarão e ao conserto de embarcações em alto mar.
Nasceu em Vitória/ES. Procura elaborar noções sobre o tempo. Trabalha a partir do mar e deseja construir narrativas para se encontrar com outras temporalidades e formas de existir. Sua experimentação se funda em sua condição de caminhante, em dinâmicas de deslocamento, travessia e pertencimento, e é fruto do desenvolvimento de sua ancestralidade. Atualmente, se encontra com a diáspora bantu, desdobra a ideia de paciência de pescador e tem investigado o calcário como indício de nossas fisicidades.